Ciclos de Silêncio: A Dor que Mora em Casa

MARIANA VARGAS SIFUENTES



Mariana Vargas Sifuentes

Março é um mês simbólico. É o Mês da Mulher. Mas para quem está atento à realidade de tantas brasileiras — e principalmente de nós, mato-grossenses — não há como viver esse período sem indignação e urgência. Como mulher, mãe, advogada e cidadã, sinto o dever de dar voz ao que ainda tentam calar: a violência doméstica e o feminicídio continuam nos roubando vidas. E não podemos mais naturalizar isso.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso, 2024 terminou com 17.910 medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres ameaçadas. Só em 2025, até março, já são 3.873 medidas. Esses números dizem muito. Revelam medo, desespero e a tentativa de sobreviver — isso mesmo, sobreviver — dentro de casa. O lar, que deveria ser lugar de acolhimento, tornou-se cenário de dor para milhares de mulheres e meninas.

Não é diferente quando olhamos para os casos de feminicídio. Em 2020, Mato Grosso teve o maior número da década: 62 mulheres assassinadas. De 2021 a 2024, a média anual foi de 47 mortes. Em 2025, seis mulheres já foram vítimas fatais. Por isso, precisamos lutar por soluções definitivas.

A violência doméstica é cíclica. E o ciclo começa, muitas vezes, com sinais sutis: controle sobre a roupa da mulher, isolamento da família e amigos, ciúme excessivo disfarçado de cuidado, comentários que diminuem sua autoestima. Depois vêm as ofensas verbais, os gritos, a manipulação emocional, até que a agressão física se torna inevitável. É um processo que se repete, intensifica e prende a vítima em um ciclo de medo e dependência.

E quando há crianças nesse ambiente, os efeitos são ainda mais cruéis. Meninas que crescem vendo suas mães sendo violentadas aprendem, cedo demais, o que é o medo. Muitas são também vítimas diretas de abusos — físicos, sexuais, psicológicos. Vivem em silêncio, carregando traumas que podem marcar toda a vida adulta. Isso é uma violência que não termina em um episódio: ela perpetua comportamentos, gerações, e adoece emocionalmente toda a sociedade.

O ciclo da violência sexual contra meninas é uma das expressões mais cruéis e perversas da violência doméstica. Em grande parte dos casos, ele se desenvolve em lares profundamente desestruturados, onde a mãe também é vítima — ainda que de forma indireta — de violência física, psicológica ou patrimonial. Essa mulher, muitas vezes subjugada por ameaças, controle emocional ou dependência financeira, não consegue perceber que, enquanto ela sofre silenciosamente, o agressor direciona sua brutalidade diretamente contra a criança.

O abusador, quase sempre alguém muito próximo — como padrasto, tio, irmão ou até o próprio pai —, se aproveita da vulnerabilidade do ambiente e do isolamento entre as vítimas. Em muitos casos, mãe e filha vivem ciclos de violência paralelos, sem que uma saiba do sofrimento da outra. O silêncio, o medo e a manipulação criam um abismo emocional dentro da própria casa, tornando impossível o pedido de socorro.

O início dos abusos é geralmente disfarçado por gestos "carinhosos" e promessas de segredos. Quando não enfrentado, esse comportamento evolui para agressões sexuais recorrentes, chantagens e ameaças. Esse ciclo perverso se perpetua em um ambiente onde o lar, que deveria acolher, torna-se o cenário de traumas profundos e duradouros. É um ciclo de dor sem fim que precisa ser interrompido com urgência, coragem e ação coletiva.

Em março de 2025, o Ministério Público registrou 56 casos de violência sexual contra menores em Mato Grosso — a maioria meninas, agredidas por pessoas da própria família. Eu me recuso a aceitar isso como parte da rotina. É revoltante e inaceitável.

As leis existem: Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, a Lei de Violência Psicológica, e mais recentemente, a Resolução CNJ nº 254/2018 e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (2021), que orientam o Poder Judiciário a aplicar uma abordagem de gênero nos julgamentos, combatendo estereótipos e desigualdades estruturais. Mas, na prática, sem políticas públicas robustas, sem orçamento adequado, e sem vontade política concreta, essas normas se tornam insuficientes para proteger quem mais precisa. É urgente fortalecer a rede de proteção com delegacias especializadas que funcionem 24 horas por dia, centros de acolhimento regionais, abrigos protegidos e bem estruturados, equipes multidisciplinares com psicólogos, assistentes sociais e atendimento jurídico humanizado. Precisamos também de campanhas permanentes de conscientização, que alcancem inclusive os territórios mais vulneráveis — onde a dor, muitas vezes, é invisível para o Estado.

E precisamos, acima de tudo, da mobilização de todos. Não podemos terceirizar a responsabilidade. O combate à violência é também uma missão minha, sua, nossa. Se você vê, ouve, percebe sinais de abuso — denuncie. Apoie. Acolha.

Março está chegando ao fim. Foram semanas de campanhas, eventos, falas e homenagens. Mas, à medida que o mês se encerra, a reflexão que fica é profunda e urgente: que tipo de sociedade estamos construindo para nossas mulheres e meninas? Os dados são alarmantes, os relatos são comoventes, e a realidade, ainda, é de medo e dor para muitas.

Neste mês de março, eu escolho me posicionar. Escolho agir. E convido você a fazer o mesmo. Não basta flores, precisamos de firmeza. Não basta discurso, precisamos de ação. Não basta lamentar as perdas, precisamos lutar para que nenhuma mulher ou menina seja a próxima vítima. Vamos construir um estado em que todas possam viver sem medo.

Dra. Mariana Vargas Sifuentes é advogada / Membra da Comissão da Mulher Advogada – OAB/MT

0 Comentários

Faça um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados* *

Veja Também