- Pela Redação
- 29/05/2023
Andhressa Barbosa
O barulho do tiro que no coração que levou a vida do “pai dos pobres” ainda ecoa no quarto do Palácio do Catete. Ir ao Museu da República é como entrar em um túmulo, com direito a sentir o cheiro frio do lugar onde aconteceu o suicídio do presidente Getúlio Vargas. É tão mórbido quanto surpreendente sentir esse instante suspenso no tempo depois de tantos anos.
Lá estão a cama, o pijama perfurado manchado de sangue e uma voz lendo a carta deixada como um Sísifo carregando sua pedra até o topo e a vendo cair para recomeçar. É um espaço carregado de simbolismo, onde cada detalhe serve como recurso narrativo para perpetuar a imagem de um líder em sacrifício. A materialidade da dor de um coração que sofre é usada para lembrar ao visitante que política, às vezes, sangra.
A história política brasileira é, antes de tudo, uma história de golpes e contragolpes, sempre movidos a comoções do coração do povo escondendo da sua razão os motivos reais, os interesses econômicos. Não raro, quando os fatos parecem escapar à razão, é o sentimento que toma as rédeas da narrativa pública. A política, é a ciência da performance, não basta trabalhar muito e mudar a realidade de uma cidade, estado ou país. É preciso conseguir narrar isso e performar bem, é preciso fazer com que as pessoas se sintam conectadas. E as pessoas vão dar mil razões para justificar suas escolhas de candidatos, mas no final, a razão é visceral, “é do coração”.
E o tiro nele, no próprio coração, em pleno exercício do poder foi uma escolha meticulosa de quem queria sair da vida para entrar na história de forma tão trágica. O coração choca, mas o ele também pode ser sinônimo de sensibilidade a serviço do bem comum. Não é à toa que candidatas mulheres usam e abusam de logos e gestos remetendo ao coração. Claro que não só elas, mas ligar o feminino às emoções é parte do arquétipo, do senso comum. Quando queremos dizer que um governador tem ações sociais, dizemos que mesmo sendo um gestor firme, ele é sensível.
Na comunicação política, essa exposição das entranhas tem diferentes formas e intenções. Na última semana, vimos uma outra figura presidencial apelando para exibição literal de suas vísceras nas redes sociais. Mas, será que que a intenção era chocar para comover ou chocar para inflamar os ânimos em meio a processos judiciais que correm no STF? Qual o limite entre sensibilizar e engajar na sua luta e causar repúdio. A medida do uso correto do grotesco exige cálculo, e será que quem a utiliza, domina a arte da empatia? Expor as tripas mobiliza uma base já sensibilizada, isso é fato, se fala para convertidos, mas a repulsa que ela causa, traz mais rejeição ou sensibiliza e comove?
Acima das tripas, o coração também é usado de forma simbólica e ele ao lado do slogan “o amor venceu” mobilizaram afetos que contrapunham o discurso da raiva e do medo. Foi uma estratégia emocional, mas positiva, centrada na ideia de reconstrução e esperança. O marketing político, nesse caso, apostou no afeto como linguagem universal, e venceu.
Esses dois polos – o das tripas e o do coração – refletem estratégias distintas de comunicação política. Uma agressiva e visceral, combativa, contra tudo isso que tá aí, canaliza a insatisfação de um país com abismos sociais imensos, com analfabetismo funcional, com saúde pública sempre em escândalos. A segunda estratégia, mais afetiva e agregadora, aposta na construção simbólica do bem comum, mas que reprime e ignora a raiva, a dor, a angústia de quem vive os problemas reais do país, o trabalhador que passa horas no transporte, a insegurança diante da violência.
Ambas são estratégias legítimas, mas ambas falam para convertidos.
Como profissional do marketing político, vejo que cada tempo e cada político exigem uma sensibilidade própria. Não podemos negar o sangue, a vida é visceral, mas o povo anseia por afeto. Por outro lado, é importante deixar claro que não adianta o amor vencer se ele reprime e não encara os problemas sociais, a fome, a corrupção. Também não adianta apelar para o grotesco em momentos críticos. Talvez seja hora de começar a nascer outros discursos políticos que agreguem das tripas ao coração.
Andhressa Barbosa é jornalista e cientista social
0 Comentários
Faça um comentário