- Pela Redação
- 29/05/2023
Renato de Paiva Pereira
Encontro-o. Trinta anos se passaram desde a última vez que nos vimos. Na época tínhamos pouco mais de 30 anos, hoje estamos passados dos 70. Está sentado em um sofá meio curvado pra frente, olhando a ponta do sapato. Demora a notar-me. Parece alheio, quase apático. Tem um porte desiludido de quem não descartou as tristezas que a vida acumula.
Lentamente, como convém a um ancião, levanta a cabeça. Põe os óculos e reconhece-me. Quer parecer alegre com o encontro por tanto tempo adiado. Esforça-se, mas não consegue. No máximo, resmunga com voz fraca uma frase emocionada, chamando-me pelo apelido de infância.
Conversamos essas coisas básicas: onde moram os filhos, quantos netos têm, permeadas de lembranças do passado. Milagrosamente, depois de tanto tempo, algumas estão preservadas.
Creio que esta cena – a percepção da decrepitude – é comum entre as pessoas que se separam por muitos anos, voltando a se encontrar na velhice.
Quando envelhecemos juntos, as pequenas e constantes modificações passam quase despercebidas. Assim, se tirarmos fotografias diárias de uma criança enquanto cresce e depois, comparando a foto de um dia qualquer com a do dia anterior, não notamos diferença.
Também, nunca percebemos um dia exato em que um bebê vira criança, quando essa criança se transforma em um pré-adolescente, em um adolescente ou em um moço. Nem quando se torna adulto ou velho. Mas se espalharmos sequencialmente as fotos em uma grande mesa e compararmos a fotografia do dia em que ela fez dois anos àquela em que completou cinco, notaremos imediatamente a modificação que os anos trouxeram.
Imaginem as pequenas modificações diárias acumuladas durante 40 ou 50 anos aparecerem de repente na nossa frente!
Volto ao encontro que motivou esta crônica. Vendo-o de frente, assusto-me. Não é ele. Meu primo não era assim. Era um garoto bonito, um adolescente alegre, um jovem garboso. Como pode ter mudado tanto?
Esse que vejo é seu pai, meu tio, sem tirar nem pôr: magro, cabelos finos, brancos e ralos, cara encovada, ar triste, voz cansada. Agora ele se levanta e o faz com alguma dificuldade, apoiado no braço do sofá. Demora um pouco para fazer este simples ato de levantar-se.
Então, me olha intensamente. Parece também admirado. Na hora não me ocorreu, mas com certeza – percebendo meu rosto enrugado, meus gestos lentos, meus cabelos brancos e minha fala cansada - estava pensando o mesmo que pensei dele, ou seja, vendo em mim a figura do meu pai.
A imagem do encontro vai pro celular. Olho-a depois. Não tenho dúvida: a foto datada registra um impossível encontro do meu pai com o pai dele.
Confiamos nos espelhos em que nos olhamos todos os dias, mas eles são mentirosos. Tal qual as fotografias sequenciais, eles vão nos acostumando, lentamente, com a decadência inevitável. O choque de realidade vem quando, incrédulos, olhamos na cara de um amigo que não vemos há 40 anos e deduzimos que ele também custa a acreditar no que vê.
Renato de Paiva Pereira é empresário e escritor.
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