Maria e as múltiplas faces do feminino

PATRÍCIA DE LUNA



Patrícia de Luna

Na antiguidade, as mulheres representadas pelas religiões apresentavam várias faces do feminino, mas, com Maria, não foi assim. Dela conhecemos só a face de pureza, perfeição e maternidade, apesar de que Maria também é a face da mulher forte, que vai até o Egito como refugiada e atravessa um exército que quer matar seu filho enquanto assiste aos seus conterrâneos terem bebês assassinados. É a mulher da periferia, que cria um filho atípico debaixo de uma ocupação violenta. É esposa e guarda os mesmos aspectos das sacerdotisas e profetisas, que conhecem o maravilhoso de Deus.

Porém, na Idade Média, essa imagem múltipla do feminino foi suprimida. Isso é representado na repressão ao culto de Maria Madalena depois que o Papa Gregório a considerou “Prostituta”. Madalena, na bíblia, é relatada como aprendiz, seguidora e alguém que sustentava a obra de Cristo. Porém, ela não tem marido e precisa ser suprimida para que apenas os aspectos de submissão, pureza e perfeição sejam valorizados. Por outro lado, o arquétipo feminino erótico acabou sendo projetado nessa figura bíblica, quando a Igreja medieval tentou reprimir a sexualidade.

Diferente da antiguidade, onde o erótico também era visto como espiritual, os líderes cristãos consideraram incompatível sexualidade e espiritualidade. Por isso, Maria, apesar de casada, seria “a virgem”. Mesmo com a concepção de Jesus sendo imaculada, ela continuou casada, então, não necessariamente continuaria virgem. A menos que sexo fosse um pecado tão horrível que ela devesse evitá-lo até no casamento.

Roma teve por séculos Afrodite como um projeto político. Quando houve a substituição da religião do Império, os templos tornaram-se Igrejas dedicadas à Maria e ao Espírito Santo, que, antes representado pelo corvo, passou a ter a pomba branca de Afrodite como símbolo. Ainda assim, o projeto político medieval de criar uma visão única da mulher e do feminino reprimiu a multiplicidade feminino na antiga religião.

Por isso, produções como o filme “Virgem Maria”, da Netflix, são tão importantes para repensar Maria na contemporaneidade. Ela é alguém mais próxima às mulheres, que podem se relacionar sem trair sua essência. Pois ela é filha, aluna, deseja José, luta... Não é apenas a pessoa de absoluta pureza, relacionada principalmente à maternidade.

Mas Maria, nesse Natal, achou um caminho até nós. Assim como no livro de Goethe, que dizem ter sido inspirado por Nossa Senhora de Montserrat, onde Fausto é salvo por Maria, e o autor escreve: “A eternamente feminina eleva-nos a si mesma”.

Que nesse Natal ela nos eleve a esse feminino mais múltiplo, que reencontra com sua natureza feminina intacta e pode mudar estruturas com amor.

Patrícia de Luna é escritora de romances baseados em história mítica, analista junguiana e autora do livro “Rio de Vênus”

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