- Pela Redação
- 29/05/2023
Nailton Reis
O feminicídio não é um ato isolado, nem nasce de repente. Ele se constrói aos poucos, dentro de relações que começaram com afeto, mas foram se transformando em espaços de controle, medo e dor. O caminho que leva ao extremo é quase sempre silencioso, e é nesse silêncio que a prevenção precisa começar. Falar sobre o feminicídio é falar sobre vida — sobre a possibilidade de interromper o ciclo antes que ele chegue ao ponto sem volta.
A violência doméstica raramente começa com empurrões ou gritos. Na maioria das vezes, ela começa nas palavras. Começa na crítica constante, nas cobranças disfarçadas de cuidado, nas pequenas restrições que vão diminuindo a liberdade do outro. Quando o controle se disfarça de amor, o terreno já está preparado para a escalada. Em Mato Grosso, o problema é urgente. Em 2024, quarenta e sete mulheres foram assassinadas em crimes de feminicídio. Dessas, quarenta e uma eram mães, deixando oitenta e nove crianças órfãs. A maior parte desses crimes aconteceu dentro da própria casa da vítima. Esses números mostram que o feminicídio é o último estágio de um processo que começa muito antes, naquilo que chamamos de violência psicológica. É ela, quase sempre invisível, o primeiro passo da espiral que pode terminar na tragédia.
No mesmo período, o canal Ligue 180 registrou aumento de mais de cento e treze por cento nas denúncias de violência doméstica em Mato Grosso. Também foram concedidas oito mil oitocentas e cinquenta e nove medidas protetivas de urgência, um aumento de dez por cento em relação ao ano anterior. Esses dados, divulgados pelo governo federal e pela Polícia Civil, mostram que a sociedade está mais atenta, mas também mais aflita. Conhecer os mecanismos de proteção é fundamental. Delegacias especializadas, Defensorias Públicas, redes de apoio e acompanhamento psicológico são recursos disponíveis para mulheres em situação de risco. Mas a prevenção começa antes da denúncia: começa no reconhecimento de que o medo não é parte do amor.
Um relacionamento saudável se constrói sobre o respeito, a autonomia e a liberdade de ser quem se é. Respeitar não é concordar com tudo, é compreender que o outro tem direito de escolher, de discordar, de viver a própria vida. A violência nasce da tentativa de controlar, do ciúme que se confunde com cuidado, da posse travestida de amor, de frases como “você é minha” ou “sem mim você não é nada”. Esses discursos, repetidos e normalizados, vão construindo lentamente a ideia de que o outro pode ser dominado. A prevenção está em desconstruir esse modelo, em aprender a se relacionar com empatia, comunicação e responsabilidade afetiva. Nenhum amor precisa sufocar. Amor saudável é aquele que não precisa ferir para existir.
É preciso também olhar para o homem e compreender que ele faz parte desse ciclo. Muitos homens que cometem violência não nasceram violentos, mas foram ensinados a acreditar que perder o controle é o mesmo que perder o poder. Quando não sabem lidar com a frustração, acabam reagindo com raiva, chantagem, perseguição ou ameaças. Esse colapso masculino, quando o controle se transforma em adoecimento, é um alerta de que algo precisa ser tratado. A psicologia tem papel essencial nesse processo. O homem precisa de espaço de escuta, precisa aprender a nomear o que sente e a lidar com o que perde. A terapia não é castigo, é prevenção. É nela que se aprende a transformar dor em consciência, e consciência em cuidado.
A mulher, por sua vez, precisa saber que a ajuda deve ser buscada antes que a situação se torne física. Quando há medo, vigilância, chantagem ou humilhação, já há violência. Procurar apoio psicológico, jurídico ou social é um gesto de coragem e de amor-próprio. A rede de proteção existe, e precisa ser acessada com rapidez e sem culpa. Romper o silêncio é uma forma de se preservar viva.
Essa é a maneira como nós, do Instituto Mentes Plurais, contribuímos para a diminuição do feminicídio em Mato Grosso: oferecendo conhecimento que ajuda homens e mulheres a construírem relações mais conscientes, seguras e respeitosas. Buscamos sensibilizar os homens a compreenderem as mulheres com quem convivem — suas parceiras, mães, irmãs e colegas — sem a necessidade de impor poder, medo ou controle. E queremos fortalecer as mulheres para que reconheçam sinais de abuso e não os naturalizem, compreendendo que o respeito começa no olhar que damos a nós mesmos. A psicologia, para nós, é uma ponte entre o individual e o social, e é através dela que acreditamos ser possível transformar vínculos, prevenir a violência e salvar vidas. O feminicídio não é destino. É uma construção que pode e deve ser interrompida a partir do momento em que a consciência desperta.
Nailton Reis é neuropsicólogo clínico.
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