Brasil e a Executivização do Legislativo

POR Suelme Fernandes



Desde a proclamação da República em 1889 até a constituição de 1946, o orçamento brasileiro e sua execução foi ato discricionário e exclusivo do Executivo, cabendo ao parlamento apenas a apreciação da peça orçamentaria enviada pelo executivo anualmente e a fiscalização de seu uso.

Em 1946, o legislativo começou a co-participar do orçamento com emendas e proposições de investimentos, mas o pagamento era optativo pelo executivo.  

Na carta de 1967, no período militar, esse direito de apresentar emendas parlamentares da carta anterior, foi suprimido do texto constitucional e só retornou na versão da Constituição Cidadã de 1988.

Em suma, dos 134 anos de república brasileira, durante 78 anos predominou o orçamento como peça exclusiva do executivo e outros 56, foi elaborado com participação do legislativo através de emendas.

Entre 2015 e 2023, essa realidade mudou drasticamente, pois as emendas tornaram-se obrigatórias ou impositivas para o Governo Federal e os montantes saltaram de R$ 9,7 bilhões anuais para R$ 28,9 bilhões.

Até 2015 as emendas eram propositivas, sem obrigação de serem pagas pelo executivo, e depois da emenda constitucional 86, passaram para o status de impositiva. Os deputados que perambulavam nos corredores de Brasília com o pires na mão passaram a ter autonomia sobre suas emendas.

“Esse aumento exponencial de recursos de emendas ocorreu nos últimos 8 anos, começou com o Presidente Michel Temer e seguiu nos governos de Bolsonaro e Lula”
Esse aumento exponencial de recursos de emendas ocorreu nos últimos 8 anos, começou com o Presidente Michel Temer e seguiu nos governos de Bolsonaro e Lula.

Com Bolsonaro, o mecanismo se aprimorou com adoção do chamado Orçamento Secreto ou Emendas do Relator do Orçamento, RP9.

Bolsonaro usou as emendas secretas do orçamento como peça de barganha em troca da aprovação das matérias de interesse do executivo. E assim foi durante 4 anos, vivendo em berço esplêndido. A diferença em relação aos governos petistas foi que não praticou o caixa 2, mas terceirizou o uso desses recursos.

Para o cientista político Sérgio Abrantes o Presidencialismo de Coalizão da Constituição de 1988 referendado pelo Plebiscito de 1993, foi posto à prova com essas mudanças legislativas a partir de 2015 e o Brasil caminha atualmente para um semi-presidencialismo velado.

Para Abrantes, essa forma de destinação e montante de recursos orçamentários causou uma certa independência do legislativo em relação ao executivo, corroendo o modelo presidencialista constitucional vigente até então, onde o parlamento cuidava essencialmente da criação de leis e da fiscalização das contas públicas.

Na prática, o presidente do Congresso Nacional e Senado passou a ter amplos poderes sobre uma fatia significativa do bolo orçamentário público que outrora, era por origem e responsabilidade do executivo, limitado a 1,2% da Receita Corrente Líquida.

Em 2022, após as eleições gerais, o STF- Supremo Tribunal Federal em decisão colegiada determinou o fim dessa prática chamada de emendas PIX ou Secreta, alegando total falta de transparência.

Após a conclusão do julgamento, no mesmo ano, o Congresso Nacional à toque de caixa achou um jeitinho de manter o montante das emendas secretas, como individuais através de uma mudança legislativa.

O novo dispositivo aprovado no apagar das luzes do ano passado pela maioria das duas casas, transferiu metade do valor do antigo orçamento secreto, R$ 9,5 bilhões, para as emendas individuais – que se tornaram impositivas alterando o percentual mínimo constitucional de destinação para emendas. Foi o pulo do gato.

Pela mudança, a União ficou obrigada a pagar as emendas individuais em um limite de 2% da Receita Corrente Líquida. Antes da PEC, na versão anterior da lei, o limite era menor, de 1,2%. Era uma forma de compensar a perca do orçamento secreto.

Essa mudança constitucional criou um efeito cascata nos demais parlamentos estaduais que foram fazendo também suas alterações legislativas para ampliar a participação dos políticos na definição da destinação dos recursos públicos oriundos dos impostos e deixar mais acuado os poderes executivos.

No caso de Mato Grosso, como o projeto já foi aprovado por unanimidade em plenário da Assembleia Legislativa que será sancionado pelo governador, o parlamento terá disponível através de emendas impositivas chamadas PIX, nada mais, nada menos que 670 milhões de reais, quase que 28 milhões de reais por Deputado Estadual, divididos entre os 24 eleitos.

Durante os 4 anos de duração de um ciclo de mandato, cada deputado destinará para atender suas bases políticas e currais eleitorais aproximadamente 112 milhões de reais.

Essas mudanças de execução orçamentária e de política terão várias consequências nos próximos anos, pois pela lei, os recursos de emendas podem ser transferidos para os entes federados (estados e municípios) sem vinculação a uma finalidade racional, pasta específica ou estudo de demanda.

Do ponto de vista da gestão e da administração pública, essas destinações orçamentárias, via emenda, podem causar uma queda drástica na qualidade das entregas e investimentos públicos, pois nem sempre elas estarão dentro de uma estratégia de políticas públicas racional e de investimentos em áreas mais importantes do Estado. E mais, as ações podem até trombarem e duplicarem entre si por falta de diálogo e planejamento entre os poderes.

Pela lei aprovada, cada um dos 24 deputados, pode destinar suas emendas para o que bem entender, podendo sua demanda constar ou não nas políticas públicas estratégicas do estado e/ou prioritárias.

Noutro aspecto, a gestão dessa montanha de dinheiro pelos deputados criará condições extraordinárias para as disputas eleitorais dos detentores de mandato em relação aos demais candidatos nas próximas eleições.

Tais inovações também impactarão sobre a governabilidade e a coalizão entre o executivo-legislativo, pois essa quase independência financeira do parlamento, somados ao duodécimo anual do legislativo, causará muitos desgastes e dificuldades na condução da aprovação de matérias de interesse do executivo no parlamento, exigindo muito mais habilidade e saliva das casas civis dos governos.

Basta lembrar que o desembolso ainda dependa da autorização executiva e o movimento do caixa das receitas e que o não cumprimento desses pagamentos pode incorrer em crimes de responsabilidades e até impeachment do mandatário executivo.

Essa fricção entre os poderes é a essência da tripartição dos poderes de Montesquieu, chamada de freios e contrapesos, mas por ser uma anomalia num sistema presidencialista causarão a curto prazo, um enorme enfraquecimento do poder executivo.

Seria adequado ao menos, que nós, os pagadores de tributos, fossemos consultados sobre essa remodelação do sistema representativo federativo, tal qual ocorreu em 1993, com um plebiscito para saber se devemos adotar essa forma de governo presidencialista ou optaremos pelo parlamentarismo de uma vez por todas.

Suelme Fernandes é mestre em História e articulista político

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