Em reunião tumultuada, Câmara adia análise de anistia a golpistas

8 DE JANEIRO



g1

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara não conseguiu dar início nesta terça-feira (10) à discussão da proposta que perdoa condenações, impostas pela Justiça, de vândalos envolvidos com os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Em reunião tumultuada, com manobras de governistas e presença de ampla maioria de parlamentares da oposição ao governo na Câmara, o relator da proposta, deputado Rodrigo Valadares (União-SE), não chegou a fazer a leitura de seu parecer, que previa um novo texto ao projeto e relativizava a conduta dos envolvidos com ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília.

A discussão e a votação decidiram, porém, pela abertura da sessão deliberativa no plenário principal da Câmara. A presidente da CCJ não previa a inclusão do chamado "PL da Anistia" na pauta do colegiado anunciada para esta quarta (11), mas, segundo ela, a expectativa é que o projeto seja introduzido como um item extrapauta.

Depois disso, deverá haver a leitura do parecer, e a base governista deve pedir vista (mais tempo para análise). Os membros da CCJ esperam que a proposta seja reintroduzida à pauta da CCJ após o primeiro turno das eleições municipais de outubro – em 8 de outubro.

Ao longo de todo o dia, que chegaram após movimentação intensa de oposicionistas para registrar presença no colegiado nesta terça — PL e PP fizeram mais de 20 trocas para garantir que houvesse o número mínimo de deputados no encontro.

O texto, que é uma das principais pautas de parlamentares de oposição ao governo e uma "moeda de troca" nas negociações pela sucessão ao comando da Casa, é criticado por juristas (entenda mais abaixo), que avaliam ser "inconstitucional" anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Além de perdoar condenações por envolvimento com o 8 de janeiro, o projeto modifica:

* regras para julgamento de pessoas comuns em casos que envolvam pessoas com foro privilegiado

* e critérios para enquadrar pessoas no crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, estabelecendo que é preciso haver violência contra pessoa

Prevê ainda que condenações por crimes contra o Estado Democrático de Direito não poderão ser baseadas nos chamados crimes multitudinários — aqueles cometidos em grupo, quando todos contribuem para o resultado a partir de uma ação conjunta.

* Essa tese foi aplicada pelo Supremo na condenação de réus pelos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023.

Os envolvidos nos ataques às sedes dos Três Poderes depredaram prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto, em uma tentativa de desestabilizar a ordem democrática e questionar o resultado das eleições de 2022.

O Supremo já condenou 227 pessoas envolvidas nos ataques às sedes dos Três Poderes pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Ao todo, 1.644 pessoas já foram denunciadas pelo Ministério Público Federal.

Para virar lei, a proposta de anistia precisaria ser aprovada pela CCJ. Mas, depois, teria de ser chancelada pelo plenário principal da Câmara dos Deputados — que tem a pauta definida pelo presidente da Casa. Na sequência, teria de ser submetida à análise do Senado.

Por fim, se aprovada nas duas Casas, também precisaria ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Veja a seguir os principais pontos do texto sugerido por Rodrigo Valadares à CCJ:

Qual é a anistia que ele propõe

O que diz sobre crimes contra o Estado

Financiamento de movimentos

Foro privilegiado

O que dizem os juristas

Movimento da oposição

A anistia

O objetivo central do texto de Valadares, segundo ele próprio, é perdoar os participantes dos atos golpistas de 8 de janeiro que foram presos ou que estão sendo investigados.

Com histórico público de participação em manifestações de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), defensor da anistia aos vândalos, em seu parecer, Valadares relativiza os atos golpistas, diz que que os vândalos foram tratados com "rigor excessivo" e argumenta que eles não "souberam naquele momento expressar seu anseio por liberdade".

Ainda trata os condenados como punidos por representarem o "ideal de oposição ao governo eleito".

Pelo relatório de Valadares, a anistia seria concedida a todos delitos ocorridos entre 8 de janeiro e a eventual data de entrada em vigor da lei. Seriam abarcados pelo perdão as pessoas que:

* participaram de manifestações com motivo político ou eleitoral nas datas

* financiaram e apoiaram os atos no período

O perdão poderá alcançar eventos anteriores ou posteriores, se tiverem relação com o 8 de janeiro.

Esse perdão vai valer para crimes com motivação política ou eleitoral, bem como os definidos no Código Penal. Também alcançará qualquer medida de restrições de direitos — impostas por liminares ou sentenças transitadas ou não em julgado — que "limitem a liberdade de expressão e manifestação" em redes sociais.

A anistia, de acordo com o texto oferecido por Rodrigo Valadares, não vai abranger os seguintes crimes:

* tortura

* tráfico de droga

* terrorismo

* hediondos

* contra a vida

* dano em patrimônio histórico

* dano em coisa alheia

* lesão corporal

* e incêndio com perigo à vida

Também seriam anuladas multas da Justiça Eleitoral ou da Justiça Comum às pessoas físicas e jurídicas por manifestações com motivo político ou eleitoral, e por financiar e apoiar atos entre 8 de janeiro e a eventual data de entrada em vigor da lei.

Segundo o projeto, a anistia seria automática, assim que a lei entrasse em vigor, sem a necessidade de o condenado pedir o perdão à Justiça.

A proposta também prevê que todos os beneficiados pelo perdão recuperariam os direitos políticos e não poderiam mais sofrer com outras implicações cíveis ou penais.

Rodrigo Valadares argumentou que a anistia contribui para "devolver o Brasil a um novo tempo".

"Um tempo de maturidade política, de convívio com os diferentes, de garantia à liberdade de expressão e um resgate da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro. A concessão de anistia é o porto seguro para que o Brasil aporte-se em um novo tempo de Justiça e a garantia do Estado de Direito em um regime democrático", disse o relator.

Crimes contra o Estado

O texto oferecido por Rodrigo Valadares define que, para haver tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, é preciso haver "violência contra pessoa" — argumento amplamente utilizado pelos defensores dos vândalos golpistas, que dizem não ter havido tentativa de inversão da ordem democrática por não ter ocorrido violência.

Apesar disso, registros mostram que policiais sofreram violência nas invasões às sedes dos Três Poderes e que uma policial militar chegou a ser atirada da cúpula do Congresso Nacional.

Pelo projeto, uma pessoa só poderia ser enquadrada no crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito se fosse comprovado o emprego de violência contra pessoa ou grave ameaça.

* Atualmente, não há a previsão de que é preciso haver violência contra pessoa. A pena, no entanto, continuaria a ser a mesma – quatro a oito anos de reclusão.

Também sofreria mudança parecida o crime de tentativa de depor governo "legitimamente constituído". A punição seguirá, segundo o texto, a mesma (quatro a 12 anos de reclusão), mas precisará haver violência contra pessoa ou grave ameaça.

Pela proposta, não poderá haver condenação por crimes contra o Estado Democrático de Direito com base nos chamados crimes multitudinários — cometidos por um grupo de pessoas em um tumulto. A tese foi aplicada pelo Supremo na condenação de réus pelos atos golpistas.

O projeto diz que é preciso haver a "individualização concreta dos atos praticados por cada coautor ou partícipe".

Financiamento de movimentos

O relator também propôs que pessoas físicas e jurídicas não podem ser punidas pelos atos dos movimentos financiados por eles, que eventualmente tentem agir contra o "ordenamento jurídico".

A responsabilização penal, segundo o parecer, só poderá ocorrer se houver comprovação de:

* dolo direto

* e nexo causal entre o auxílio prestado, as condutas antijurídicas praticadas e o resultado produzido

Foro privilegiado

O parecer de Rodrigo Valadares também prevê mudanças no julgamento de pessoas comuns em inquéritos que envolvam pessoas com foro privilegiado — prefeitos, juízes, deputados, ministros, governadores e senadores, por exemplo.

Segundo a proposta, réus atraídos a uma instância superior só poderão ser julgados de forma conjunta ou na sequência da pessoa com foro privilegiado.

A cada fase do inquérito, deverá haver um reexame do foro para que as pessoas comuns não tenham "marcha mais célere que o da autoridade detentora do foro por prerrogativa de função".

O projeto também estabelece que, assim que uma autoridade perder o foro, todos os julgamentos e pessoas atraídas por ela para uma instância superior deverão ser imediatamente redistribuídos para as instâncias adequadas na Justiça — independentemente da fase processual.

Especialistas veem tentativa de enfraquecimento do STF

Especialistas em direito constitucional criticam o texto e apontam que, embora o Congresso tenha competência constitucional para conceder anistia, há um conflito em tentar perdoar crimes contra o Estado Democrático de Direito e uma tentativa de enfraquecer o Poder Judiciário.

Segundo o doutor em direito constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ademar Borges, a Câmara tem competência para aprovar uma lei de anistia, mas a anistia não pode incidir sobre esse tipo de crime.

"O STF decidiu que é inconstitucional a anistia dada às pessoas que cometem crimes contra o Estado Democrático de Direito. Sendo assim, o perdão para esse tipo de crime seria inconstitucional", afirmou.

A avaliação é semelhante à do advogado criminalista André Perecmanis, também professor de direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

"O Congresso se colocaria acima do Judiciário, outro precedente perigosíssimo. Anistia é um instrumento previsto na Constituição, mas a aplicação nesse caso é inconstitucional", avaliou Perecmanis.

Para o professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gustavo Sampaio, há uma contradição na proposta ao estabelecer anistia para condenados que tentaram agir contra o próprio Congresso.

"Pelo inciso 44 interpretado literalmente, o Congresso pode até aprovar um PL de anistia, todavia é absolutamente contraditório imaginar que um projeto de lei conceda anistia a quem agiu contra a própria democracia, fundamento maior da separação de poderes", disse.

O professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Wallace Corbo, segue a mesma linha: "O poder Legislativo para burlar a proteção à democracia está anistiando crimes contra a democracia".

Movimento da oposição

Nos bastidores, a proposta de anistia tem sido avaliada por parlamentares aliados a Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas em 2022, como um "moeda de troca" na disputa pela sucessão de Arthur Lira (PP-AL) ao comando da Câmara.

A intenção de fazer andar uma proposta de anistia aos vândalos ficou clara no último fim de semana, em um discurso do próprio ex-presidente Bolsonaro em São Paulo.

"Anistia é um remédio político. O Congresso pode nos dar esse remédio político. Nós merecemos isso", declarou.

Desde o último ano, parlamentares de oposição têm afirmado que podem condicionar o seu apoio ao comprometimento de um candidato com o eventual avanço do texto na Casa.

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