- Pela Redação
- 29/05/2023
Roberta D'Albuquerque
Sofia, minha filha, fez aniversário ontem. Saímos para almoçar ela, a irmã, minha mãe e eu. Chovia sem dó em São Paulo e, claro, muita gente teve a mesma ideia. Foi preciso esperar. Na espera, sentadas no balcão do bar do restaurante, avistei um casal que riu ao se encontrar na porta. Usavam os dois o mesmo tom de vinho nas camisas. Ela estendeu a mão para o aperto enquanto ele se aproximou para beijá-la. Voltaram a rir do atrapalho. Passamos as 4 a assistir à dupla. Pareciam empolgados com o que logo inventamos ser um date de dois acadêmicos há muito separados de seus casamentos originais dando-se a primeira chance de reencontrar um par após longo período de dedicação a três ou quatro pós-docs. Eu sei, a gente vai longe.
Parece que tinham reserva, pois passaram da porta direto para uma mesa enquanto nós seguíamos nos equilibrando nos banquinhos altos do bar. O salão cheio de espelhos facilitou a nossa atenção à cena por todos os ângulos. Ela alcançou a carta de vinhos, ficou na dúvida entre um tinto e um rosé, pediu opinião do moço (devia ter perto de 70, mas somos todos moços quando apaixonados, ou não somos?). Ele preferia um tinto. Conversaram charmosos entre o pão e a manteiga. O vinho chegou, “ela prova”, “pode servir”, “saúde”, “tim tim”, ele olha bem no olho dela, ela baixa o olhar, sorri, são
lindos (mais ou menos, as camisas horrorosas, mas somos todos lindos quando apaixonados, ou não somos?). A gente só não pediu pipoca porque não tinha no cardápio.
Sentamos. Não perto o suficiente para ouvir a conversa - o que é bom, porque assim sobra mais espaço para a imaginação -, não longe demais para perdê-los de vista. Até que ele diz qualquer coisa que não se acomoda bem no ouvido dela. A moça murcha, respira fundo, desfaz a postura. Ele não percebe continua falando para o desgosto dela que remexe a salada com um garfo já sem intenção.
Cai o encanto. E foi rápido, exato na hora que nossa cestinha de pão encostou na toalha branca. Spoiler: o clima não se refez até nosso último gole de café. Dentro de mim, fico na torcida para que o resto do dia da moça tenha lhe dado a oportunidade de rir com a cabeça pra trás como ela fez na entrada do restaurante, na torcida para que o moço tenha aprendido qualquer coisa. E vai que eles eram irmãos discutindo o inventário do pai, talvez colegas de trabalho botando pra frente uma tarefa difícil, ou ainda um casal juntos há sabe-se lá quantos tempo e que a murchadinha tenha sido uma dor de barriga inesperada que lhes servirá como história pra contar mais tarde aos netos. Não sei.
Mas sei da Sofi, do gosto que tive ao vê-la deixar a imaginação correr sem limites, ao vê-la torcer (como eu e como Jorge Ben) pela alegria e pelo amor. É o que desejo a ela, é o que vejo nela, é o que sinto quando penso nela: liberdade, alegria e amor de sobra. Viva minha filha, e as filhas dos leitores e os leitores. Se a gente prestar atenção, a vida pode ser meio assim, feito é a Sofi, uma música boa de Jorge Ben.
Roberta D'Albuquerque é psicanalista, atende em seu consultório em São Paulo e escreve semanalmente no Gazeta Digital e em outros 17 jornais e revistas do Brasil, EUA e Canadá. E-mail: contato@robertadalbuquerque.com.br
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